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sábado, 24 de abril de 2010

“Alice no País das Maravilhas”, um enigma de Tim Burton na linha de Lewis Carrol

Este texto poderia ser considerado um spoiler, se “Alice no País das Maravilhas” fosse um filme de suspense. Mas há de fato uma maciça dose de mistério cercando esse trabalho de Tim Burton. Vejamos: por que motivo ele atribuiu à protagonista a idade de 20 anos, colocando-a como herdeira de um poderoso empresário de comércio internacional? E por que, na última cena, ela toma um navio mercante em direção à China, no comando de uma missão de negócios, ostentando uma anacrônica gravata masculina? Para facilitar a fruição do filme, uma explicação deveria ser apresentada logo na abertura, talvez num letreiro, como fez George Lucas em “Guerra nas Estrelas”. O procedimento esclareceria a complexa estratégia que ele adotou para adaptar o livro do inglês Charles Dodgson (1832-1898), publicado sob o pseudônimo de Lewis Carrol em 1865 – ano em que se iniciou uma guerra de 4 anos entre a China a Grã Bretanha, que ficou conhecida como a Segunda Guerra do Ópio. O que era mesmo aquilo que a lagarta azul fumava de um narguile, sentado num cogumelo?
O que ela iria comprar e vender no então chamado Império do Meio? A pista para responder esta pergunta está na história. Naquela época, os britânicos importavam seda, porcelana e chá – bebida da qual a Rainha Vitória era dependente, junto com a totalidade de seus súditos. Ingerir essa infusão de ervas era um hábito tão importante que servira de gancho para uma revolta considerada um dos estopins da guerra da Independência dos Estados Unidos: a “Boston Tea Party”, de 1773. Naquele ano, o Parlamento inglês entregara o monopólio do comércio do chá à Companhia das Índias Orientais, que pertencia a uma maioria de capitalistas ingleses. Em resposta, os americanos jogaram ao mar o carregamento de chá dos navios da companhia que estavam no porto de Boston.
Por outro lado, na primeira metade do século XIX o ópio representava o grosso das exportações britânicas para a China, porque era a mercadoria que mais interessava aos consumidores. Assim, quando a sua importação foi proibida pela dinastia Qing, os britânicos lhe declararam guerra. Produzida em alguns locais da Índia e do Oriente Médio, que na época era ocupado pelo Império Otomano, a droga era vendida ilegalmente aos chineses por mercadores ingleses que a trocavam basicamente por seda, porcelana e chá. Será por acaso que esses produtos dominam a cena de Alice, por meio do Chapeleiro Louco e seus comensais − a Lebre de Março, o Gato Risonho e o Coelho Branco? Nessa sequencia central do filme que é a “Mad Tea Party”, Alice se encontra com a “elite social” do País das Maravilhas e, miniaturizada como um chip, é escondida dentro de um bule.
O nome original do país com o qual a menina Alice sonhava todas as noites desde os 6 anos, aliás, era simplesmente “Under Ground” – instância social em que se situavam as transações mercantis envolvendo o produto aspirado pela Lagarta Azul que, ao fim da história, “morre” para se transformar em borboleta da mesma cor. Aí a simbologia se completa: ao longo da história, os ingleses trocam o comércio subterrâneo de escravos e drogas por mercadorias mais nobres, como produtos manufaturados. Na versão de Tim Burton, antes de recusar o pedido de casamento do filho de um Lorde, a Alice de 20 anos cai na toca do Coelho e experimenta na carne as mesmas aventuras com as quais sempre sonhara. É importante notar que essa queda se prolonga por vários minutos e, ao seu término, a personagem cai sentada sobre o teto de uma sala, com os cabelos para cima. Ao olhar em torno, ela depara com um candelabro em que as velas se acham com a chama virada para baixo e, aí sim, cai ao chão. Isso indica que o fundo da toca coincide com um local antípoda à Europa, ou seja, o extremo oriente do planeta, onde se localiza a China.
Após o término da fantástica aventura ocorrida no mundo subterrâneo, ao sair do buraco, ela encara o mundo real: recusa o pedido de casamento e chama o pai do noivo para uma conversa privada. É quando ela lhe propõe sociedade num empreendimento comercial no império da Grande Muralha. Como lembra o crítico Luiz Zanin, a “Interpretação dos Sonhos” de Sigmund Freud só seria lançado três décadas depois. Mas, mesmo assim, a protagonista deve ter vislumbrado retalhos de uma realidade futura por trás dos símbolos contidos naqueles sonhos recorrentes desde a infância. Numa pré-munição, observou um confronto interno entre brancos e vermelhos. Brancos, como a droga e como era designado o próprio chá chinês obtido da camellia sinensis – o "chá branco". Vermelhos, como é a bandeira da China e, que na tradição da marinha britânica, também é a cor da bandeira que representa guerra. Há finalmente uma batalha da qual ela mesmo participou, empunhando a espada para defender um dos lados. De fato, os ocidentais venceram a Guerra do Ópio. Em resultado, a China abriu 50 de seus portos para o comércio com estrangeiros e a Ilha de Hog-Kong permaneceu sob o domínio inglês até 1997.
Em outras palavras, a hipótese é que Tim Burton e a roteirista Linda Woolverton desenvolveram duas histórias para o filme, uma recheando a outra, como num sanduiche narrativo. Desta forma: no primeiro ato, vemos a história real de uma menina rica que vai ser pedida em casamento por um aristocrata; no segundo, ela cai num buraco e vive (ou sonha de novo com) tudo aquilo com que sempre sonhou; o terceiro ato conclui a história esboçada no primeiro, ou seja, ela volta para a realidade, recusa o pedido e tem um insight que a leva a embarcar em viajem mercantil para a China. Tim Burton e os executivos da Disney podem ter decidido essa linha para poder trabalhar com dois níveis de dramaturgia, fazendo com que o plano do discurso realista enfatize e valorize a narrativa fantástica transcorrida no País das Maravilhas. Foi, aliás, o mesmo estratagema de Guillermo Del Toro em “O Labirinto do Fauno” (El Laberinto del Fauno, 2006).
Mas os enigmas permanecem. Por exemplo, por que a Rainha Branca prepara feitiços num laboratório, como uma bruxa? O que significa esse o Chapeleiro Louco, sempre com um dedal de costura no dedo? Na passagem em que ele participa mais ativamente da trama, está criando e costurando chapéus para a Rainha Vermelha que irá experimentá-los um a um. Naquela parte do século XIX, ainda não existia a indústria de confecção e as roupas ainda não apresentavam marcas. E esse personagem talvez possa ser visto como o protótipo de um estilista de moda, um designer excêntrico sempre em conflito com a padronização. Talvez o símbolo da manufatura de roupas e tecidos que se tornaria o carro chefe da industrialização inglesa e o núcleo de seu comércio exterior. Quem sabe a figura central de uma alegoria surreal e onírica sobre o colonialismo britânico, em busca das maravilhas da China. Em suma, essa estrutura de roteiro é um enigma que Tim Burton submete ao público, equivalentes aos que o próprio Lewis Carrol inventava e com os quais os personagens do livro desafiavam uns aos outros.
ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS
Alice in Wonderland
estreia 23 04 2010
EUA - 2010 – 111 min. - 10 anos
gênero infantil / fantasia / Aventura
Direção Tim Burton
Distribuição Columbia
Com Johnny Depp, Helena Bonham Carter e Anne Hathaway
COTAÇÃO
* * *
BOM

6 comentários:

Paloma Rodrigues disse...

Boa noite Luciano! Gostei muito da maneira como tratou o filme. Estou cansada de ler críticas de fãs dos livros falando que o filme é fraco e que não deveriam "colocar uma história onde não existe história".

Achei o seu ponto de vista muito interessante!

Seus textos me inspiram muito! Desde que li seu livro venho tentando escrever mais regularmente e com mais seriedade.

Seria muito importante para mim saber a sua opinião sobre minha maneira de escrever. Sei que ainda tenho muito o que aprender.

Se você tiver um tempo, por favor, leia meu blog (nem que seja só um texto) e me diga o que você acha.

O Brasil tem excesso de pessoas que se acham críticas mas que nada sabem sobre cinema. Tento estudar o máximo possível sobre o assunto (acabei de ler o livro "Prática do Roteiro Cinematográfico" de Jean-Claude Carrière e Pascal Bonitzer, você conhece?) e ver o máximo de filmes que consigo!

Adoraria poder conversar sobre o assunto com você.

Ficaria grata de ter sua opinião.

Um abraço! Continue com o bom trabalho.

Paloma Rodrigues disse...

Deixo aqui o link para o meu texto sobre Alice: http://el-judas.blogspot.com/2010/04/momento-critica-alice-no-pais-das.html

Eutiquio Fonseca disse...

Ótimo ponto de vista sobre o filme. Parabéns!

Sarah disse...

Olá!
Gostei do ponto de vista sobre o filme, realmente interessante!
Mas confesso não levar muito consideração suposições como essas, pois a cada momento surge uma nova suposição interessante e que se encaixa perfeitamente na historia dos livros e neste novo filme.
Gostei muito do filme e sou grande fã do livros e do classico de 1951.
Gostei do post e do blog...
Parabéns!

Naya Vital disse...

Amei a decupagem do enredo, fiquei muito feliz de algumas coisas que eu pensei durante o filme você as retratou aqui, significa que estou no caminho certo!
Tenho um bog de moda e montei um post do filme, gostaria muito de complementar com o seu ponto de vista crítico.

Melanie Claire Young disse...

Depois que li seus comentários sobre Alice, fiquei mais animada para assistir o filme. Gosto muito das suas perspectivas. Obrigada!